sábado, 11 de dezembro de 2010

LÍNGUAS ARCAICAS / TU x VOCÊ

Escrevo este texto a partir de uma pergunta que me foi feita no Fórum do Recanto das Letras, sobre o uso do bantu num romance histórico ambientado no Brasil do século XVIII, com personagens africanas ou descendentes. Na resposta que eu dei, procurei focar nos aspectos mais objetivos, mas aqui posso me estender em exemplos e citações.
Em primeiro lugar, não acho que seja uma necessidade o autor contextualizar também a língua, para que a história esteja bem contextualizada. Por outro lado, é um fator facilitador para o autor, e uma espécie de brinde para o leitor, como uma cereja num doce. Usar formas antigas da língua requer uma pesquisa específica, de filologia histórica. E só vale para histórias ambientadas em países que têm a mesma língua em que a história será escrita. Ou seja, é inútil eu usar português arcaico numa história que se passa em local que não fala português. Não acrescenta nada em contextualização eu fazer Nicolaas dizer “asinha”. Já Duarte pedir que Fernão faça alguma coisa, acrescentando “asinha” faz todo sentido e dá à história o sabor de arcaísmo que eu estou tentando evocar (“asinha” quer dizer “rápido”). Quando o local escolhido é um país que não fala português, meu único cuidado lingüístico é não usar gírias nem expressões coloquiais, e assim a linguagem fica formal, talvez em excesso, considerando que eles deviam ter expressões coloquiais. Mas descobrir as expressões coloquiais de outros povos em outras épocas e como traduzi-las corretamente para o português, de forma que sejam a expressão original e façam sentido em português é uma pesquisa muito específica e foge aos meus propósitos, que são apenas de contar uma história e contextualizá-la da forma mais verossímel possível. Não pretendo servir de fonte a pesquisas lingüísticas.
Quando fui escrever Construir a terra, conquistar a vida, resolvi que usaria a linguagem da época, tanto quanto não comprometesse a compreensão do leitor, sem que eu precisasse construir um glossário. A pesquisa foi mais longa do que a escrita e é algo que terei ainda que revisar. Aproveitei também a oportunidade para entrar em contato com o tupi, pois tenho Ayraci, uma personagem Tamuya (adoto a grafia registrada por José de Anchieta). Ela fala algumas palavras e frases em tupi, que são logo traduzidas, mas, quando precisei fazer um diálogo inteiro, preferi escrever em português, e apenas informar que o diálogo estava acontecendo em tupi, privilegiando a compreensão do leitor.
Acho que utilizar a língua como era na época ajuda o autor a contextualizar, e ajuda o leitor a entrar “no clima” da história, mas não é uma necessidade. O autor pode conseguir os mesmos objetivos sem utilizar a língua histórica. Tudo vai depender da habilidade dele, seja para usar a língua antiga, seja para dar clima de antiguidade sem usar a gramática e o vocabulário antigos. Quando eu estava escrevendo Construir a terra, conquistar a vida, toda hora eu consultava a parte de informação histórica do Dicionário Houaiss (que me foi gentilmente oferecido pela Gerente de Patrocínio da Petrobras à época). Eu queria escrever “garoto”, palavra que só aparece escrita no século XIX – portanto não me serve, pois não devia ser de uso corrente no século XVI. Então mudei para “moleque”, que tem registro escrito no século XVIII, mas é de origem africana, e os africanos estavam apenas chegando no Brasil, portanto ainda não influenciariam tanto a língua, a ponto de um português de Lisboa usar o neologismo. Fiquei então com “fedelho” que, embora tenha certa conotação pejorativa de imaturidade, é uma palavra da época (escrita desde o século XVI) e de origem portuguesa. Aí o tempo passou e eu quis escrever “prostituta”, que só começa a aparecer por escrito no século XIX, então fiquei mesmo com a antiga “meretriz” (do século XIV), que atendeu meus propósitos. Além disso, recolhi palavras e expressões especialmente de Gil Vicente, escritor para o povo, e também de Camões, e vou ver como acrescentar ao texto de forma que não prejudiquem a compreensão.
Sempre que vou escrever uma história ambientada no passado, paro para pensar se vou escrever os diálogos em segunda ou terceira pessoa (“tu” ou “você”). Como no Brasil é raro usarmos coloquialmente a segunda pessoa, às vezes opto por ela para caracterizar a antiguidade. Fiz isso em O maior de todos mas não nos outros publicados. Na época em que escrevi O destino pelo vão de uma janela, eu costumava alternar o uso da segunda e da terceira pessoa conforma o contexto da cena, usando a terceira nas situações normais e reservando a segunda para denotar intimidade. Meus romances ambientados no Brasil do século XIX são escritos em terceira pessoa, pois é justamente quando o Vossa Mercê estava se tornando você; mas nas conversas familiares às vezes uso a segunda pessoa, nessa idéia de denotar intimidade.
Na hora de re-escrever O canhoto, pensei em repetir o que fiz em O maior de todos e escrever tudo em segunda pessoa, mas uma das falas que eu queria aproveitar de Mosteiro era a despedida de Ester, quando ela diz “amo você, quero você, preciso de você”. Achei que não teria a mesma força na segunda pessoa, então, por causa de uma frase, escrevi toda a história em terceira pessoa. Cheguei a pensar em fazer os monges usarem a segunda pessoa, mas achei que seria muito forçado, como se a pessoa deixasse de ser o que é, deixasse para trás seus hábitos só porque se tornou monge, então meus monges usam a terceira pessoa como todas as outras personagens.
Tudo fica mais fácil ao se ambientar uma história no Brasil atual, quando esse cuidado na escolha das palavras e expressões não é necessário, pois vou mesmo usar o português atual em terceira pessoa. Mas aí que graça tem?

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Mestre em História e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dedica-se à literatura desde 1985, escrevendo principalmente romances. É Membro Correspondente da Academia Brasileira de Poesia - Casa Raul de Leoni desde 1998 e Membro Titular da Academia de Letras de Vassouras desde 1999. Publicou oito romances, além de contos e poesias em antologias. Desde junho de 2009 publica em seu blog textos sobre seu processo de criação e escrita, e curiosidades sobre suas histórias. Em 2015, uniu-se a mais 10 escritores e juntos formaram o canal Apologia das Letras, no Youtube, para falar de assuntos relacionados à literatura.

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