Estou
lendo os primeiros capítulos de um dos livros de minha amiga literária Isie Fernandes e fiquei pensando que religião têm as personagens dela, pois sei que
ela é evangélica. Será que todas as personagens dela são evangélicas só porque é
a religião dela, ou ela consegue fazer personagens que acreditam em outras
coisas? Bem, eu teria que ler as Obras Completas da autora para poder
responder, mas seus livros ainda estão inéditos, então terei que adiar essa
pesquisa.
A
reflexão, porém, serviu para eu analisar a minha
produção. Será que eu consigo
caracterizar com convicção personagens que acreditam em coisas diferentes das
quais eu acredito? Qual a religião das minhas personagens? Será que são todas
católicas, só porque eu sou católica?
Bem, sim, a grande maioria das minhas personagens é católica, mas não por ser essa minha religião, e sim porque a maioria das minhas personagens vivem no mundo ocidental antes da Reforma de Lutero, Calvino e Henrique VIII. Estão nessa situação todas as personagens de O destino pelo vão de uma janela (883), Pelo poder ou pela honra (1415), O maior de todos (1348), Anoiva trocada (1572), Construir a terra, conquistar a vida (1567-1592), O canhoto (1189-1193). Devo acrescentar que, até meados do século XX, a grande maioria da população brasileira era católica, e eu teria que elaborar alguma estratégia para ter personagens não-católicas (por exemplo, descendentes de alemães protestantes vivendo em colônias tradicionais). Portanto, também são católicas as personagens de Vingança (1899), Fábrica (1910) e Rosinha (1913-1928). Há nuances nessa religiosidade, desde Vingança e O destino pelo vão de uma janela, em que esse aspecto é tão sem importância que nem citado, até O canhoto , em que a religião é tão importante que tenho monges e um mosteiro beneditino na história (e eu tive que estudar a Regra de São Bento para dar coerência ao comportamento e às atividades das personagens), passando por Rosinha e Fábrica , em que as personagens vão à missa aos domingos.
Nas
histórias ambientadas no presente (O processo de Ser, O aro de ouro, Nem tudo que brilha..., Amor de redenção), a questão religiosa não é mencionada,
mas às vezes há aspectos de crenças citados – em Nem tudo que brilha...,
as personagens se dividem entre quem acredita em reencarnação e quem não
acredita. A questão da reencarnação, com personagens que acreditam e
personagens que não acreditam, também está presente em Amor de redenção e, na
fase que acontece no século V, todas as personagens são arianas, uma variante
do catolicismo que foi declarada heresia no Concílio de Nicéia (325).
Minha
grande personagem não-católica é Rudbert, que cultua ainda as divindades
celtas, em companhia de Atilde, a vizinha feiticeira. É interessante, pois Primeiro a honra se passa na Europa após Cristo e antes da
Reforma Protestante do século XVI mas há espaço para personagens pagãs, pois o século
V é justamente de expansão do cristianismo pela Europa, então tenho na mesma
história personagens cristãs recém-batizadas, e personagens que permanecem pagãs.
Após
essa análise rápida, posso concluir que sou capaz de caracterizar bem
personagens com crenças diferentes das minhas – a ponto de receber comentários
de que eu estaria fazendo uma crítica ao cristianismo com a caracterização de Rudbert e Atilde.
Mas não nomeei este texto “Apologia” para falar da religião das personagens, e sim para falar da única vez em que a minha opinião religiosa prevaleceu. Procuro sempre deixar essas questões de fé em aberto, afinal minhas personagens têm direito de acreditar em coisas diferentes, e eu não tenho interesse em doutrinar o leitor. Então não fecho a questão se Rudbert está certo em seu paganismo, ou Rosala está certa em seu cristianismo; não decido se Roberto está certo em acreditar em reencarnação, ou se está certa Isabel em não acreditar. As personagens não argumentam, não tentam convencer o outro, mas respeitam a opinião diferente em silêncio. E, em Amor de redenção isso acontecia também – Ágila acreditando em reencarnação e Camila não acreditando. Mas, como essa é uma história em que o diabo aparece e contracena (o que já é suficiente para que seja uma história cristã, pois há religiões que não consideram a existência dessa entidade), precisei do meu repertório de crenças para combatê-lo. Camila é católica, Ágila é ariano, e é o poder do nome de Jesus Cristo que dá força ao casal para enfrentar o diabo. O sinal da cruz e a oração do Credo são as armas possíveis.
É claro que não fiz de caso pensado. Não pensei em fazer uma história doutrinadora – e espero não ter feito! Só recentemente percebi como a minha religião foi fundamental para o desenvolvimento da história. Penso que, nesse caso, as personagens – pelo menos Camila – teriam obrigatoriamente que ter a mesma religião que eu, pois é a que eu conheço melhor e cujas crenças eu saberia usar para o desfecho que eu queria. Então é a única história em que eu, através das personagens, defendo os conceitos em que eu acredito, especialmente na cena decisiva entre Ágila e Camila, em que ela fala dos Planos de Deus para a vida dele, e como a interferência do diabo atrapalhou isso, e mesmo assim Deus não o abandonou. É a fé inabalável de Camila que determina seu relacionamento com Ágila e, dessa forma, tudo o que acontece na história. É uma história realmente especial em vários aspectos, e este é apenas um deles.