terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

CARNAVAL SEM NOVIDADES

Não é culpa do Carnaval. Estou aproveitando esses dias para escrever minha história e completar algumas pesquisas. Mesmo assim, não tenho nenhuma nova reflexão para postar aqui hoje, e acho isso incrível. A história está caminhando, já entrei em 1920, depois de pesquisar de novo para ter certeza de que realmente não houve nenhum acontecimento de maior relevância no ano de 1919, nem no Brasil nem no Mundo. Aproveitando a Wikipedia aberta, dei uma conferida também nos outros anos, de 1915 a 1922, e fiz anotações para 1920 e 1922, mas não sei se os fatos são significativos o suficiente para serem usados na minha história.
Em 1919, Toni aprendeu a se divertir em São Paulo, com os colegas de trabalho. Mas, como alegria de pobre dura pouco, em junho de 1920, chega uma pessoa para mudar a vida dele. Nos próximos meses, ele terá que provar persistência de objetivos e firmeza de caráter. E em 1922 eu vou confrontá-lo com a decisão mais difícil de sua vida. Ele poderá escolher entre o caminho fácil e o caminho difícil. Mas o que é fácil e o que é difícil na vida? Cabe a cada um avaliar e decidir.
A página 100 ainda não chegou, mas já está lá, cor-de-rosinha, esperando pelo momento de conter uma parte da vida de Toni. Devo chegar a ela ainda este mês, então depois conto quando foi que a escrevi.
Como disse, hoje não tenho muito o que contar. É uma boa hora para ler os textos antigos do blog. Boa leitura!

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Entrevista a Rainer - parte 3

Parte final da entrevista que dei a Rainer Gruggenberger, sobre meu livro Primeiro a honra, lançado em julho de 2011. A primeira parte está aqui e a segunda parte está aqui. Esta terceira parte foi mais difícil de organizar, pois tive que retirar as perguntas que citam trechos do livro, e que contam o meio e o fim da história, e detalhes que eu não gostaria de adiantar aos leitores. Então a numeração "saltada" das perguntas não é um erro, mas uma forma de indicar que as perguntas que não estão aqui são muito "indiscretas" e por isso não puderam ser publicadas.

9) Foi interessante para mim observar o uso das várias formas gramaticais que exprimem diferentes níveis de cortesia. As amigas Rosala e Constance se endereçam na segunda pessoa do singular, que no Brasil é quase desaparecida até entre os melhores amigos. A maioria das pessoas usa “você” enquanto, entre os criados e o senhor, bem como entre o filho nobre Thierry e o pai dele, se usa a palavra “senhor”. Até quando se usava “senhor” no Brasil? Existem ainda famílias que o usam? Uma vez o pai de Thierry usa a segunda pessoa do singular: “Foste descortês com nosso hóspede, Thierry”. Você às vezes muda do registo da cortesia entre os mesmos falantes: o Lanrose já na próxima ocasião usa “você” com Thierry, e quando Thierry e Rosala falam sobre a paixão e amor deles e quando Thierry está morrendo, ele e Rosala já não se tratam mais por “você” mas, como instintivamente, por “tu”. No dia seguinte porém, depois o morte de Thierry, Rosala, fingindo uma conversa com o morto, volta para usar “você”. Toda essa variedade de formas pessoais não são comuns ao português brasileiro, mas sim ao português europeu. Por isso a sua linguagem me parece mais europeia do que brasileira. Você acha o português europeu, tendo uma tradição muito mais antiga do que a brasileira, seria mais apropriado para produzir literatura em português ou pelo menos quando se escreve romances históricos que são situados fora do Brasil ou em geral antes do século vinte? Você acha o português europeu, na maioria dos campos sociais, uma variedade com mais habilidades de diferenciação linguística do que a brasileira?

Em relação ao uso de "tu" e "você", o que temos no Brasil atualmente é o uso incorreto do "tu", que é colocado com verbos conjugados na terceira pessoa (tu viu o jogo?) ou o pronome oblíquo "te" usado também em conjunto com a terceira pessoa (você sabe que eu te amo). O uso correto da segunda pessoa no Brasil realmente desapareceu há algum tempo. Quando escrevo romances históricos, gosto de usar os registros como deviam ser, se tivessem mantido suas características originais. Por isso, em diálogos de mais intimidade, muitas vezes prefiro usar a segunda pessoa (tu), e deixo a terceira pessoa (você) para os diálogos mais gerais, entre pessoas próximas ou distantes. O uso do "tu" ou do "você" varia conforme o sentimento das personagens. Quando Lanrose usa o "tu", está falando carinhosamente ao filho; quando usa "você", procura deixar de lado o emocional para dar uma opinião isenta. Quando Thierry e Rosala falam de fugir, o "tu" ajuda a mostrar a intimidade entre duas pessoas que se dizem dispostas a morrer em nome de um amor (embora nenhum dos dois na verdade veja a morte como uma possibilidade real). Quando Thierry morre, novamente essa intimidade é desejada e, além disso, "eu te amo" é mais forte do que "eu amo você". Para fazer a frase que eu quero em segunda pessoa, foi preciso fazer todo o diálogo em segunda pessoa (veja meu texto sobre esses registros)

Ainda há, no Brasil, famílias em que os filhos se dirigem aos pais tratando-os por "senhor" e "senhora". Em relação aos avós, é ainda mais comum. Tenho a impressão de que somente as gerações com menos de 10 anos estão chamando os avós de "você" sem encontrar problemas. As pessoas que chamavam seus avós de "senhor" querem que os netos os chamem de "senhor" também, então esse é um costume que só agora começa a ser flexibilizado, quando alguns avós permitem ser chamados pelos netos de "você". Muitos amigos da minha geração chamam os pais de "senhor" e ensinam assim a seus filhos.

Essa variedade de formas pessoais - a mudança de registros de intimidade, de fato não é comum à língua falada no Brasil, mas cabem bem na língua escrita, que é mais resistente a mudanças e segue mais de perto a chamada norma culta. Então, se por um lado eu tenho um vocabulário simples, por outro tenho esse tipo de requinte de linguagem.

Não conheço a fundo o português falado em Portugal, e não me sentiria à vontade em usá-lo. A única vez que procurei uma forma mais lusitana de se falar foi quando escrevi Construir a terra, conquistar a vida, história ambientada no Rio de Janeiro no século XVI, quando a maioria das personagens se compõe de portugueses nascidos em Portugal e quase todo o restante é de portugueses nascidos no Brasil - mas não menos portugueses do que os europeus. Ainda assim, para não comprometer a legibilidade, procurei não usar palavras muito desconhecidas dos brasileiros. Os cuidados que tive para dar à fala das personagens o ar português arcaico que eu precisava foram quanto ao uso de gerúndios e diminutivos. Ainda assim, considerando que, desde o século XVI, a língua falada nos dois lados do Atlântico tomou rumos de desenvolvimento diferentes, conclui, pelas pesquisas que fiz, que nossa fala hoje no Brasil é mais próxima do português do século XVI do que a fala dos portugueses atuais. Enfim, não considero que o português de Portugal possa ser mais apropriado para escrever romances históricos aqui no Brasil. Temos aqui também uma norma culta, que rege a linguagem escrita e que, de fato, está distanciada da linguagem falada, que tem um processo de desenvolvimento mais dinâmico e ágil. Então, o português brasileiro oferece as mesmas ferramentas que o português europeu, numa construção que, para nós brasileiros, é mais familiar e que eu domino melhor. Acho que o português europeu pode ser conveniente para escrever diálogos entre personagens portugueses, estejam eles em Portugal ou aqui no Brasil - como na história que citei.

10) Além disso, você não usa “o futuro brasileiro” composto da forma declinada de ir mais o infinitivo, mas “o futuro tradicional europeu”, por exemplo: “Ele disse que eu aprenderei a amá-lo, com o tempo.”

Aqui no Brasil esse "futuro tradicional europeu" se chama Futuro do Presente, e é um tempo do Modo Indicativo. O que você chama de "futuro brasileiro" é um anglicismo derivado do uso da internet por pessoas que não aprenderam os tempos verbais corretamente na escola. A norma culta da língua escrita recomenda que se use as formas sintéticas das palavras (tempos verbais e superlativos, por exemplo), justamente para evitar estrangeirismos e para preservar a riqueza da nossa língua. Veja novamente que, a par da simplicidade do vocabulário e da clareza de escrita, que você apontou, há no texto a elegância do bom uso da linguagem escrita.

11) Mudamos o assunto e nos concentramos no conteúdo. Você acha que Rosala teria mesmo conseguido amar ou pelo menos respeitar Toulière como marido dela? A recusa dela e a fuga com Thierry provocaram a morte de Thierry e muitas dores para ela mesma. Você acha que seria melhor se ela tivesse aceitado Toulière como marido? Sabendo tudo o que lhe aconteceu, você também teria decidido como ela se estivesse no lugar dela? Você concorda que “o amor” seja “uma loucura”, mas que “a loucura de amor é boa”?

Acho que Rosala poderia ter vivido com Toulière sem maiores problemas. Com o tempo, o amor por Thierry se tornaria lembrança de um tempo passado e ela se conformaria com a vida que teria. Mas, considerando as características de ambos, acho que ela nunca o amaria, e o respeito possível seria apenas o da convivência pacífica, mas não um respeito de admiração pelo outro.

Você diz que ela recusou Toulière e quis fugir com Thierry, mas na verdade, ela apenas lamentou os fatos. Ela em nenhum momento recusou seu destino de casar-se com Toulière, nem pediu a Thierry que fizesse nada. A fuga foi ideia de Thierry. Rosala apenas confirmou que o seguiria para livrar-se de Toulière. Ela poderia não ter concordado com a fuga, mas Thierry lhe pediu uma escolha: casar-se com Toulière ou casar-se com Thierry, e ela escolheu com o coração, sem pensar nas possíveis consequências. Lembre-se de que Rosala e Thierry são adolescentes (16 anos) e, mesmo naquela época em que a maturidade precisava ser atingida com menos idade, eles eram inconsequentes como qualquer jovem de qualquer época. Eles pensaram na melhor possibilidade e não levaram em conta que Toulière poderia alcançá-los furioso - que foi o que aconteceu. Sim, Rosala poderia ter simplesmente se casado com Toulière, mas então não haveria uma história de vingança e superação de perdas para eu escrever. Na verdade, não fica evidente como seria o relacionamento entre Toulière e Rosala depois de casados; não se pode prever se ele a respeitará, ou se a tratará com desprezo e superioridade, como nas cenas em que ele aparece. Diante disso, acho que eu também tentaria uma atitude desesperada (fugir), mesmo considerando as piores possibilidades - embora ninguém pense em atitudes desesperadas se já sabe o que vai acontecer. Acho que concordo que amor seja loucura. Mas não vejo nada de bom numa loucura que cega a pessoa e a faz agir sem pensar nas consequências. Dizer que "a loucura de amor é boa" é um romantismo meio piegas, consistente com a imaturidade de Rosala nessa época.


14) Rosala buscou sua vingança fingindo ser o homem Ailan. Você acha que até hoje, ainda que não precise ter a aparência de um homem, uma mulher precisa sim agir como um homem para conseguir certos objetivos?

Uma mulher que se dedica à carreira, em detrimento da vida familiar, está agindo como homem. E elas se vestem como homens também, usando ternos e roupas sóbrias, que escondem sua feminilidade, para que possam ter o sucesso profissional que os homens ambicionam. Acredito que a realização mais importante da mulher não está no ambiente de trabalho, mas no ambiente familiar. Não prego, com isso, o retorno da mulher ao lar, à vida de dona-de-casa dependente do dinheiro do marido. Só acho que a vida é curta demais para gastá-la correndo atrás apenas de dinheiro e sucesso profissional. Acho que é preciso haver equilíbrio, para que as conquistas feministas não se tornam uma outra escravidão, semelhante ou pior à que havia.

15) Uma coisa que me irritou no início era que os protagonistas do romance jantaram quando hoje em dia almoçamos, porque só depois começou a tarde. Esse fato é devido à época ou tem qualquer outra explicação? Senão, porque você achava melhor escrever “jantar” em vez de “almoçar”?

O hábito de uma refeição leve ao acordar (café-da-manhã ou desjejum ou pequeno almoço em português) começou no século XVIII ou XIX. Antes disso, as pessoas almoçavam ao acordar e jantavam por volta do meio dia, encerrando o dia com uma ceia no final da tarde, quando se recolhiam para os preparativos para a noite de sono. É por isso que, no século V, depois do jantar, vem a tarde.

16) O romance é muito crítico em frente do cristianismo. A sabedoria dos pagãos, sobretudo da feiticeira Atilde, quase sempre vence os dogmas cristãos. O cristianismo, e nem só a igreja da qual se fala só uma vez no romance, é apresentado como inimigo duma vida na harmonia com a natureza e com os instintos. O cristianismo, pelo menos como é praticado, prejudicaria e dificultaria a vida mais do que ajudaria. É só a opinião dos pagãos Atilde e Rudbert, que, ao contrário de quase todos os outros protagonistas, vivem a vida deles de acordo com a natureza, com a lei dela e com os próprios sentimentos, ou reflete também a sua? Você foi influenciada por Nietzsche numa época da sua vida? Você acha que os cristãos se concentram demais no futuro ou seja numa vida depois a vida na terra e esquecem por isso de viver numa maneira certa no presente? Você acha que uma vida com ou até na natureza é a única possibilidade para conseguir uma felicidade referente a um contentamento verdadeiro e sustentável? Atilde tem razão quando acusa o cristianismo de fazer cego e conduzir a cometer erros e a comportar-se de modo falso? Existem no cristianismo normas principais que você acha desumanas ou seja não correspondentes à natureza humana? Você quer criticar só o cristianismo em particular ou a cultura pós-pagã em geral? Devemos repreender ao cristianismo a intolerância dele em frente a outros sistemas de viver e de crer? É uma pergunta um pouco inútil, mas você acha melhor que o cristianismo nunca tivesse se imposto no Ocidente? Você preferia que o cristianismo tivesse mais ou menos importância do que tem agora no Brasil?

Conscientemente, não tive influência de Nietzsche, mas não posso rejeitar totalmente a possibilidade, pois li trechos de algumas obras de Nietzsche, e textos sobre ele, quando estudei estética (no curso de história da arte). Dessa forma, posso também ter influências de Schopenhauer, Kant, Platão, Aristóteles, Plotino, que eu me lembro de ter estudado. As ideias passam a fazer parte de mim e eu não saberia dizer se têm origem em algum filósofo, ou se as tirei do senso comum.

Se você for analisar a atitude de Rudbert frente à religião celta, verá que, mesmo na própria religião, ele é subversivo, e tem uma visão própria dos valores e das práticas religiosas, adequando-as ao que considera certo e conveniente.

Embora a religião cristã pregue uma recompensa futura, ela se baseia na vida presente. Quem não tiver fé (e obras, no caso do catolicismo) hoje, não receberá a recompensa futura.

Uma vida com ou na natureza é possibilidade de felicidade para quem faz essa escolha. Como diz Rudbert (e eu concordo com ele), não há um caminho único.

Atilde também não é uma pessoa perfeita, embora tenha ajudado muito Rosala a superar suas perdas, assim como Berta, que a acolheu em sua casa, como membro de sua família. Quando Atilde acusa o cristianismo é despeito por ter perdido os amigos para a nova fé. Quando Berta precisou "mudar o sangue" de Adèle, ela chamou por Atilde. Quando eles precisam de ajuda com os "demônios" de Ailan, não chamam mais por ela, mas por um padre cristão. Com o advento do cristianismo, ela perdeu poder, por isso ela critica a nova fé quando pode.

O cristianismo tem preceitos esquisitos, como todas as religiões, pois são arbitrariedades de quem detém o poder, e são contra a natureza humana sempre que não permitem que as pessoas pensem com a própria cabeça e façam as próprias escolhas. A crítica ao cristianismo só acontece na história para mostrar que Rudbert e Atilde têm um outro ponto de vista mas a opinião deles nunca prevalece, pois todos os outros permanecem cristãos e, exceto por uma fala de Rosala, mais para o final, todos permanecem firmes em suas convicções cristãs. Veja que, no final, Rosala recusa a bênção de Atilde, que tão bem lhe fez.

Era uma época de misturas culturais. O cristianismo era novidade para as pessoas, que ainda misturavam sentimentos pagãos a práticas cristãs. Berta, cristã, respeita Atilde por ser descendente dos druidas (pagãos), e apresenta Ailan à vizinha para que ela faça prognósticos. Também quando Ailan e Rudbert vão partir, Archibald (cristão) aprova que Atilde opine se o tempo é propício. Então são cristãos ainda muito apegados aos costumes que tinham quando eram pagãos, e é isso que eu tentei mostrar dessa forma. Não tenho intenção de criticar nenhuma religião, apenas mostrar que são diferentes, e que cada uma tem suas particularidades, virtudes e incoerências. Fé é uma questão pessoal e não estou aqui para converter ninguém a nenhuma religião. Meu interesse é histórico, e não teológico.

Não sei como seria a civilização ocidental sem a interferência milenar do cristianismo, moldando mentes e a cultura como um todo. Também não sei que Brasil seríamos se os Jesuítas (especialmente) não tivessem perdido suas vidas neste fim de mundo, empenhados nos trabalhos da fé, junto aos nativos e aos europeus que aqui viviam.


19) No nosso tempo se tornou difícil para um homem escrever coisas sobre uma mulher ou até mulheres em geral que poderiam ter conotações negativas. Você também acha mais facil para uma mulher escrever uma frase como: “mulheres gostam de conforto.” Ou: “as mulheres são muito perigosas. Elas fazem você acreditar que manda nelas quando, na verdade, carregam você pela coleira.” Você, como mulher emancipada sem preconceitos, acha bom e produtivo que um homem não deve criticar nem enxergar coisas que, sem generalizar, poderiam ser corretas, mas que ele, somente porque é homem, não deve exprimir sem ver-se confrontado com a repreensão de ser sexista, anti-gender ou political incorrect? Não é uma forma de censura que pode provocar mais mal-entendidos e distância entre os sexos do que contribuir a uma convivência justa?

Homens e mulheres têm diferentes visões de mundo e, portanto, diferentes formas de se expressar. Nunca pensei em minhas histórias como expressão de sexismo. Não tenho hábito de ler textos sexistas, então não estou habituada a pensar nesse tipo de questão nos meus textos.

23) A primeira parte do capítulo dez parece fortemente inspirada pelos carmina burana. “O sol a tudo iluminava, puro e sutil. Um novo mundo renascia, com a chegada de abril.” Se comparamos com esta sua frase a primeira metade do primeiro paragrafo de “Omnia Sol temperat”, é até mais uma tradução do que uma paráfrase desse. É no fim desta parte, onde você fala também sobre a “roda do destino”, tema central de “O Fortuna”, de “Fortune plango vulnera” e novamente de “Omnia Sol temperat”, que parece o seu modelo principal. Trata se dum experimento literário? É interessante que você se inspirava num texto que foi escrito, ou pelo menos recolhido, só 800 anos depois da época da história do romance. Qual foi o seu objetivo e o estímulo? Efectuou-se a sua recepção dos carmina burana inicialmente ou somente através a musicalização deles por Carl Orff? Era uma influência sem a qual não se realizaria esta parte do romance?

Sim, completamente Omnia sol temperat! Foi uma brincadeira que fiz, diluindo a letra da música no meio do texto. A cena é praticamente desnecessária, ela só existe para conter a letra da música. Sim, só conheço Camina Burana pela música de Carl Orff, e gosto especialmente da primeira versão que assisti, com regência de Seiji Osawa. O texto não tem relação com a história, nem foi fonte de inspiração. Foi mesmo uma pequena diversão, construir uma cena minha usando a letra de uma poesia de outro autor, em tradução livre feita por mim mesma. Só mesmo um bom conhecedor de música para perceber este "Easter Egg" :)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

QUANTO DETALHAR

Muito importante na hora de construir a verossimilhança de um romance histórico é incluir na ficção fatos históricos reais, de maneira que as personagens fictícias participem e sejam afetadas pelos eventos históricos. Dessa forma, a história da personagem parece possível de ter acontecido de verdade, e o leitor acaba acreditando que a ficção é real. Acho que isso é um ponto positivo num romance histórico.

Quando eu comecei a escrever, lá no final do século XX, eu não tinha essa consciência, e meus primeiros romances, embora tenham as características da ambientação escolhida, não se apegam a esse tipo de pormenor. As personagens moram naquela cidade, ou naquela região, mas não naquela rua específica, naquela casa específica, em que o sol entra pelas janelas de manhã. Eu só comecei a me preocupar com isso quando fui buscar o passado da minha cidade, para escrever Uma antiga história de amor no Largo do Machado, e tinha que fazer minhas personagens andarem pelas ruas que existiam na época, e verem os prédios que havia na época. Em 146 anos (o lapso de tempo entra a data da história – 1845 – e o ano em que eu estava – 1991), a cidade do Rio de Janeiro mudou muito, com aterros, construções e expansão, e eu tinha uma cidade muito diferente para apresentar.

Mesmo assim, a história real era passiva, era um cenário a ser visitado, e não um redemoinho que carregasse minhas personagens em sua passagem. Foi somente em Construir a terra, conquistar a vida que as coisas começaram a se entrelaçar, pois Duarte veio para o Rio de Janeiro para lutar contra os franceses, na batalha que ficou conhecida com o nome de Uruçumirim. Duarte viu Estácio de Sá cair atingido pela flecha que o acertou no rosto; Duarte foi ao enterro de Estácio de Sá; Duarte construiu sua casa nova no Morro do Descanso, no terreno que Mem de Sá lhe cedeu. Depois, quando os franceses voltaram, e estavam em Cabo Frio, Duarte foi atrás deles, enquanto seus filhos patrulhavam a praia. Tudo o que aconteceu na cidade teve a participação efetiva de minhas personagens. Tenho muito orgulho do que consegui realizar.

O canhoto também tem esse entrelaçamento, inclusive com a participação de pessoas que existiram de verdade, e o principal evento de que minhas personagens participam é a Terceira Cruzada. Não é toda história que pede esse tipo de trabalho. Alguns romances são mais fechados, e uma ambientação básica já cumpre seu papel. Em outros romances, entretanto, a cidade, com sua história e geografia, também é personagem, e a narrativa fica mais aberta a interferências da realidade. Minha história atual é assim. Já inclui a Greve Geral de 1917, e informações sobre a Grande Guerra, em que o Brasil ingressou em 1918. Faltava contar a Gripe Espanhola, também em 1918, mas achei que a narrativa estava meio arrastada, e eu estava demorando muito para avançar, então resumi o episódio da Gripe em um parágrafo e entrei feliz em 1919, contando sobre o novo emprego de Toni. Mas, cada vez que eu relia, me batia um desconforto de pensar “parece que a Gripe foi só isso, e não a tragédia que foi”. Uma amiga minha resumiu meu sentimento “Você já passou pela Gripe Espanhola e nenhum personagem seu morreu? Não pode”. De fato, não pode. Se as personagens foram para as ruas na Greve Geral de 1917, se estão pagando caro pela comida por causa da Grande Guerra, elas também precisam pegar Gripe Espanhola. Então voltei para contar como minhas personagens enfrentaram uma das maiores epidemias da época, que vitimou mais de 35 mil pessoas em todo o Brasil, incluindo Rodrigues Alves, o presidente eleito, que morreu em janeiro de 1919, antes de ser empossado para seu segundo mandato. Mas quem matar? Quem poupar? Já me apeguei às personagens secundárias que se destacam mais, e não tem graça matar quem não tem importância, pois não fará falta na história. Também é preciso decidir se Toni será infectado ou não, e como a doença progrediria nele, que é a personagem principal. Muitas questões a definir, em nome da verdade do texto.
Então, de posse do conhecimento dos eventos históricos da época escolhida, é preciso detalhar todos os grandes momentos, que marcaram aquela época. Mas detalhar não é escrever uma página contando o que foi o evento e seus desdobramentos – podemos deixar isso para os livros de não-ficção. Detalhar, no romance histórico, significa envolver as personagens no evento, jogá-las no turbilhão, para que elas vivam aquilo e deem à ficção uma aparência de realidade histórica.

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Mestre em História e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dedica-se à literatura desde 1985, escrevendo principalmente romances. É Membro Correspondente da Academia Brasileira de Poesia - Casa Raul de Leoni desde 1998 e Membro Titular da Academia de Letras de Vassouras desde 1999. Publicou oito romances, além de contos e poesias em antologias. Desde junho de 2009 publica em seu blog textos sobre seu processo de criação e escrita, e curiosidades sobre suas histórias. Em 2015, uniu-se a mais 10 escritores e juntos formaram o canal Apologia das Letras, no Youtube, para falar de assuntos relacionados à literatura.

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