quarta-feira, 1 de julho de 2009

O CANHOTO

No momento, não estou escrevendo nada, nem tendo idéias para um próximo romance. Em março, terminei O canhoto, que rendeu 376 páginas e demorei 629 dias para escrever (quase dois anos inteiros), o que dá uma média de 0,6 páginas por dia, minha média habitual.

O canhoto se passa na Flandres do final do século XII e a personagem principal participa da Terceira Cruzada (1189-1192), o que me exigiu muita pesquisa durante todo o processo.

A história já existia desde 1988, com o nome de Mosteiro, mas estava suspensa (descartada) porque encontrei incoerências na caracterização das personagens e havia alguns clichês e deus ex-machina irritantes.

Então um dia, em 2006, eu lia uma descrição dos mosteiros cistercienses feita por Henri Focillon, no livro Arte do Ocidente: a idade média românica e gótica. A ambientação era tão detalhada que eu me vi andando por aqueles corredores e pensei "tenho que fazer uma história que se passe num mosteiro..." E em seguida lembrei "eu tenho uma história que se passa num mosteiro!" Resgatei o texto e reli algumas partes mas de fato não havia salvação. Mas, se ela estava suspensa, é porque eu tinha carinho por ela e não tinha conseguido descartar completamente. Só havia um jeito: re-escrever. A trama estava pronta, só precisava reformular as personagens e fazê-las agir de novo, de forma mais coerente. Para isso, busquei na Internet informações sobre o ambiente escolhido: Bruges, 1186. Foi quando me deparei com o primeiro problema.

Em 1988, quando escrevi Mosteiro, eu não tinha muito acesso a material sobre os vários assuntos que eu tinha que saber para uma história de tal envergadura. Li alguns livros da Biblioteca Nacional mas a vontade de escrever logo não me deixou pesquisar muito. Em 2006, com a Internet à minha disposição, me oferecendo rapidamente textos, meta-textos, fotografias e mapas, a pesquisa foi mais profunda e eu descobri que minha história francesa, feudal e rural tinha que se tornar uma história flamenga, citadina e urbana.

A primeira dificuldade a resolver foi os nomes das personagens, que eram em francês. Em Mosteiro, eu tinha François Beauvans, sua mulher Charlotte e os dois filhos Robert e Jean Michel - este último a personagem principal. Parecia fácil simplesmente traduzir mas não gostei de Jan Michael. Eu estava acostumada à sonoridade suave de Michel, enquanto Michael é um nome duro. Então o grande dilema: mudar o nome da personagem principal, o que significa mudar a personalidade e a imagem que tenho dela. Foi difícil, mas tive essa coragem. Como em Michel, eu queria um nome oxítono, que tornasse possível o ritmo que eu tinha no nome francês em flamengo. Uma amiga que morou na Holanda me deu uma lista com cinco sobrenomes para eu usar na história e eu escolhi Van de Linde para a família principal, ao mesmo tempo em que me decidia por Nicolaas, em lugar de Michel.

Depois tive que destituir o canhoto de sua posição de senhor feudal e fazê-lo filho de comerciante rico. A caracterização acabou sendo mais fácil e a ocupação profissional dele ao longo do percurso foi mais coerente, mas tive que incluir uma personagem para treiná-lo em esgrima para a Cruzada.

Também tive que estudar sobre os Beneditinos e escolher um mosteiro para Nicolaas ingressar, e fazer a vida dele no mosteiro conforme a Regra de São Bento (não era assim em Mosteiro).

Depois foi "só" guiar as personagens pela história já conhecida e planejada, aproveitando algumas falas, gestos e atitudes mais marcantes da primeira versão e o Mosteiro se tornou O canhoto.

ESCREVER SONHOS

É uma prática comum. Assim nasceram várias histórias. Algumas são sobreviventes e três estão publicadas: O processo de Ser, O Aro de Ouro e O maior de todos. Naturalmente, a história é maior do que o sonho, que se torna mera ideia inicial, e que pode aparecer descrito em qualquer parte da história. No Processo de Ser, ele aparece logo no início, o salvamento da primeira cena, e as atitudes de Piotr durante toda a história. No Aro de Ouro, é o final, compreendendo as três cenas do final (mas há no final também cenas e detalhes que não estavam no sonho). No Maior de todos, o sonho é o ponto de virada no desenvolvimento da trama, o motivo que leva Legrand a sair da Corte.

Das histórias que estão na fila de impressão, somente uma foi baseada num sonho: Vingança. Nela, o sonho foi o fato gerador do desejo de vingança, que é contado quase no final da história.

Alguns sonhos permanecem em suspenso, e um dia ainda vou escrever algumas das histórias que eles me inspiraram. Gosto particularmente de Doze figuras de bronze – me falta o nome e a característica para todas elas - e de uma que eu chamo de "morto que volta", que eu queria situar no Brasil colonial mas que só parece caber na Europa medieval. Gosto também de Desencontro, uma proposta diferente da minha prática: em vez de contar como as duas personagens principais se encontram, eu conto como elas vivem em desencontro, mesmo quando estão juntas. Outra história, que eu chamo de “Rosinha”, só se tornou interessante quando eu reinventei, alterando completamente o final, em relação ao sonho que a inspirou. Mesmo assim, ainda tenho dúvidas quanto ao final já inventado, por isso não a escrevi [editado: já escrevi Rosinha, e ficou com o título de De mãos dadas].

Um grande número de histórias baseadas em sonhos foram escritas e descartadas – inclusive aquela primeira, de 1985, que deu origem ao vício de escrever, e outras foram descartadas sem nem chegarem a ser escritas. Como eu tenho o hábito de voltar ao que já tenho criado para reinventar, até conseguir algo que valha a pena ser escrito e depois publicado, senti a necessidade de registrar o resumo da estrutura criada, às vezes até com alguma frase mais marcante de narração ou de alguma personagem, para que eu não precise confiar na minha memória, que já não consegue guardar tanta coisa.

É importante frisar que a história inspirada num sonho não é o sonho em si. O sonho é apenas o fato gerador, como pode ser uma cena ocorrida na rua, no ônibus, em casa; uma ideia ao se ler um livro ou assistir a um filme.

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Um pouco sobre mim

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Mestre em História e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dedica-se à literatura desde 1985, escrevendo principalmente romances. É Membro Correspondente da Academia Brasileira de Poesia - Casa Raul de Leoni desde 1998 e Membro Titular da Academia de Letras de Vassouras desde 1999. Publicou oito romances, além de contos e poesias em antologias. Desde junho de 2009 publica em seu blog textos sobre seu processo de criação e escrita, e curiosidades sobre suas histórias. Em 2015, uniu-se a mais 10 escritores e juntos formaram o canal Apologia das Letras, no Youtube, para falar de assuntos relacionados à literatura.

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