Neste texto comemorativo dos meus 27 anos de carreira literária, quero pegar um viés diferente. Em vez de falar nas ideias que deram certo, nos textos que viraram livros, vou falar nas ideias que não se tornaram histórias, e nos textos que foram descartados.
Pois é, nem tudo são flores na carreira artística. Ninguém consegue ser brilhante todo o tempo. Não se pode acertar todas. Cerca de 90% do que se produz serve apenas como exercício para não se errar de novo mais para frente. Só 10% (no meu caso, menos) de tudo o que se cria realmente merece ter prosseguimento e vir a público.
Sendo a época de fechar mais um ciclo (aniversário), posso fazer minhas contas e estatísticas: ao longo de 27 anos, tive 309 ideias (começos ou meios ou finais ou temas), das quais apenas 139 consegui desenvolver até o final (são histórias realmente) – ou seja, praticamente 45% de todas as ideias realmente se tornaram história com começo, meio e fim. Quando eu comecei a escrever, eu escrevia tudo o que eu inventava, sem me preocupar se depois conseguiria dar prosseguimento à ideia. Isso me fez ter muitos textos simplesmente começados, às vezes um punhado de páginas, uma cena, uma página, um parágrafo. É algo que poderia ter me desanimado, ter me feito questionar se eu de fato era capaz de levar uma narrativa até o fim, mas eu tinha tantas idéias novas todos os dias que considerava que em algum momento a inspiração para dar continuidade a todos os textos surgiria, talvez por mágica, talvez como um sopro das Musas. Acho que nem preciso dizer que todos esses textos incompletos, todas essas idéias que não renderam histórias estão devidamente descartados. Infelizmente, em algum momento eu rasguei algumas coisas, e hoje me arrependo, pois entre esses textos incipientes estava, por exemplo, o registro da primeira ideia de Rosinha, a história que hoje estou escrevendo. Então, embora eu tenha na memória que a estrutura básica foi mantida, como eu retomo muito certos temas, já não tenho certeza se a Rosinha de hoje realmente guarda vínculos com a Rosinha original, ou se misturei a estrutura com alguma outra história pelo caminho que tinha o mesmo tema (por exemplo, Espera e Raio de Sol).
Foram 139 histórias inventadas, mas não escrevi todas. Não basta a ideia ter um final, é preciso que eu goste dele, que eu considere que é uma história que vale a pena ser escrita. Também é preciso tempo para escrever. Então, são apenas 59 histórias que se tornaram texto - ou seja, 42% de todas as histórias inventadas e 19% de todas as idéias que já tive.
Escrever bem não é tarefa fácil. É preciso dar consistência à caracterização das personagens, descrever o ambiente, contextualizar, seguir a estrutura pré-estabelecida, criar bons diálogos, construir personagens interessantes, contar bem a história, redigir um texto coerente, não abusar do deus-ex-machina, utilizar as palavras e expressões corretamente, desenvolver cada cena no tamanho adequado, para citar só alguns aspectos. Então não é porque o texto está escrito que vou sair procurando editora para publicar. Tive sorte por perceber que era necessário apontar todos os defeitos e inconsistências dos textos e descartar tudo o que eu não considerasse próximo ao “perfeito” na época da análise. É por isso que, de tudo o que foi escrito, somente 19 textos permanecem, estou escrevendo um e pretendo escrever mais dois. Para efeito de estatística, vamos considerar que, pela minha experiência acumulada, essas três histórias que estou escrevendo ou vou escrever ficarão boas e serão sobreviventes (não, a minha experiência não garante que os textos ficarão bons. Só a avaliação posterior poderá julgar). Então, são 22 textos sobreviventes – ou seja, 37% das histórias escritas sobrevivem, o que equivale a quase 16% das histórias criadas, e 7% de tudo o que eu já inventei.
E que histórias são essas, que foram descartadas? Em geral, ideias bobas mas também ideias interessantes que eu não sei como desenvolver. Às vezes me vem à cabeça uma cena, ou um tema, e eu registro, para ver se acontece alguma coisa. Às vezes misturo idéias já tidas e invento uma coisa nova (Construir a terra, conquistar a vida é um exemplo de sobrevivente a partir de duas idéias descartadas). Pode dar certo ou não. Quero citar uns exemplos de histórias descartadas que me vêm à mente agora: a história de Juliana que pegou carona na garupa da bicicleta de André, na Ilha de Paquetá (escrita); a história de Roberto, que entrou de penetra numa festa grã-fina e saiu dela com o compromisso de dar uma festa igual (Champagne – não escrita); a história de Miguel, que comprou Alice para ser sua esposa (Tudo que o dinheiro pode comprar – escrita e quase publicada); a primeira história, que tentei reestruturar e reescrever duas vezes, sem sucesso (Sahara – escrita); Mosteiro (escrita), que se tornou O canhoto; Idade Média (escrita), que se tornou Primeiro a honra; Simultaneidade (não escrita), que fala de um rapaz que vive no presente e no passado ao mesmo tempo; Bonzinho mau-caráter, que já tem cinco versões inventadas e nenhuma escrita. Bem, são muitas e não vou conseguir citar nem as principais todas aqui. A última história que descartei foi À procura (romance), que era reescrita de À procura (conto), também escrita.
O descarte pode acontecer a qualquer momento. Há histórias que são descartadas logo após serem inventadas, pois é uma ideia que na hora não consigo levar adiante. Outras são descartadas depois de prontas, pois acho que não vale a pena escrever. Nesses dois casos, na verdade, estou descartando idéias e projetos. Ultimamente, como esse descarte preliminar ficou mais freqüente, é mais difícil descartar histórias escritas. Mas do que eu escrevi no início, pouco restou: foram descartadas em alguma avaliação posterior à escrita. As histórias estão sempre em risco de serem descartadas, até que eu as mande para a gráfica, como aconteceu com Tudo que o dinheiro pode comprar, que foi descartada quando eu preparava os arquivos para a gráfica. O limite entre a vida e a morte é bastante tênue, e as histórias estão sempre sendo reanalisadas e reavaliadas, então a morte paira sobre elas constantemente. Por isso chamo as boas histórias de sobreviventes: elas vêm escapando com sucesso de todas as avaliações.
Não tenho pena de descartar o que não considero perfeito. Sei como é fácil criar, como é fácil escrever. Então estou buscando mais do que isso: escrever bem, tramas sem furos, personagens interessantes, linguagem apropriada, contextualização conforme a necessidade da trama. Exigente como sou, tenho 19 textos sobreviventes. É mais do que um para cada dois anos de carreira. Hoje sei que o polimento do texto é mais demorado do que a escrita, então na verdade me considero bastante produtiva. A fila de publicação é que demora a andar, mas estou cuidando disso e logo anunciarei o lançamento de meu oitavo livro, A noiva trocada, em produção independente.
Chego aos 27 anos com uma maturidade que eu não imaginava alcançar quando comecei. É muito bom olhar para trás e ver o que foi construído. E essas histórias descartadas, em vez de serem fracassos, como poderia parecer à primeira vista, são na verdade o chão que eu piso, a escada que me faz progredir. Elas são as mestras que, se não ensinaram como fazer, ao menos ensinaram como não fazer, o que pode ser até mais produtivo e eficiente. Fica então minha homenagem a esses degraus que eu pisei, a esse caminho trilhado, cheio de sucessos que sobrevivem e de sucessos descartados.
Gostei demais, Mônica.
ResponderExcluirDevo dizer que era justamente o que eu precisava ler. Muito Obrigado pelas dicas.
Amei, Mônica!
ResponderExcluirComo atirei no lixo, literalmente, tudo que tinha produzido durante os primeiros doze anos de tentativa, não posso contar muito do que descartei. Na verdade, posso enumerar o que ficou para trás, arquivado, mas que ainda penso em concluir - o que não garante que serão publicados.
Enfim, você é uma verdadeira máquina de criatividade, tenha certeza disso. Parabéns pelo 27º aniversário de carreira!
Beijos!
Michel e Isie
ResponderExcluirQue bom que vocês gostaram. Obrigada pela visita.