Lá
em 1985, eu comecei a inventar as histórias antes de dormir – hábito que
mantenho até hoje, embora atualmente a atividade me absorva em outros momentos
também. Nesse início, eu não me contentava em criar mentalmente, mas vivia as
cenas que inventava, falava, gesticulava, e é por isso que a maioria das cenas
de Odestino pelo vão de uma janela, por exemplo, acontece à noite, quando
Marie se deita para dormir.
Aos
poucos, fui melhorando meu processo de criação e focando mais nas necessidades
das histórias do que na minha realidade de estar inventando na hora de dormir.
A atividade ficou mais mental e menos física. Mesmo assim, muitas vezes tenho
necessidade de encenar o que escrevi para me assegurar de que os gestos ficaram
naturais, de que a fala não é um trava-línguas, ou não ficou com vício de
linguagem (exemplos que eu tive que trocar: “não sei se eu sei ser assim”; “rondando
as redondezas”). Em geral, faço isso quando estou sozinha, mas já precisei
pedir ajuda para saber se um determinado gesto era possível – e aí sobra para o
marido e para a melhor amiga, que são pessoas pacientes e dispostas a me
ajudar, e que vão aceitar, sem maiores questionamentos, um simples “é pr’uma
história que estou escrevendo” como resposta ao óbvio “pra que você quer saber
isso?”
O
caso mais pitoresco aconteceu em Amor de redenção. Há uma cena em que
Camila sai da escola, encontra Ágila e briga com ele, enquanto anda pela rua.
Como eu construí a ambientação para que ela estude num colégio específico –
embora eu não diga o nome dele – eu resolvi que precisava saber em que ponto
exato da rua cada fala era dita, cada gesto era feito. A cena já estava escrita
quando eu encenei. Na época, eu morava na Glória e estava fazendo um curso (por
acaso, de escrita criativa) quase chegando em Botafogo. Como a cena da minha
história acontece no Catete, resolvi ir a pé para o curso, para passar pelo
local da cena. Quando me aproximei do colégio, tirei os papéis da bolsa e me
preparei. No portão do colégio, parei e comecei a ler as falas em voz baixa e a
caminhar conforme a descrição que eu tinha feito: sai andando rápido, para, continua
devagar, acelera o passo, para de novo. Fiz o possível para ser discreta mas
percebi que algumas pessoas me olharam, estranhando eu andar lendo, alterando o
passo e parando sem motivo nenhum. E o que a princípio até para mim parecia uma
excentricidade mostrou-se muito útil pois a cena é mais curta do que eu tinha
imaginado (ou a rua é mais longa) e eu tive que ajustar algumas descrições de
forma que combinassem com a realidade.
Eu
tinha que ter feito algo parecido em Difícil conquista, na cena em que Pedro e
Lisa atravessam do Copacabana Palace para a praia mas, na época em que escrevi,
tinha vergonha de fazer isso e depois essa história foi descartada, de forma
que a averiguação se tornou desnecessária.
Ambientar
histórias na cidade em que se mora tem essa vantagem, de se poder facilmente
marcar as cenas no cenário. Quando se escreve histórias ambientadas em outras
cidades (a própria cidade em outros tempos também é outra cidade), é preciso
usar outras estratégias para esse tipo de marcação, e recorrer a fotografias,
mapas e cálculos matemáticos, sempre correndo o risco da marcação não ficar
correta. É bem mais fácil simplesmente encenar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.